Nota:
Algumas generalizações serão
feitas no texto. Não significa que todas as pessoas de
classes sociais ou locais citados participem do que será
descrito, é
apenas uma opinião e eu entendo que dentro de qualquer
grupo existem diferenças.
Muito tem se falado nesse momento sobre
os atos de vandalismo e violência ocorridos na passeata do dia 17 de
junho, no Rio de Janeiro. Houve severas críticas aos
manifestantes mais exaltados, pessoas sem entender o porquê de tanta violência, pessoas
querendo defender o patrimônio público e pessoas que
simplesmente queriam protestar em paz, sem medo de levar balas de borracha e de
verdade, e que ficaram horrorizadas com os eventos ocorridos no palácio Tiradentes e na Alerj.
Tenho lido diversos relatos e críticas a esses poucos
manifestantes. Algumas dessas críticas até bem severas, com
pessoas defendendo o uso de armas de fogo contra elas./ Até entendo algumas
dessas críticas. Só que pensar simplesmente que eram vândalos, ou que eram
uma massa manobrada por partidos mais radicais, é uma visão pouco ampla do
evento ocorrido ali. E é um pouco sobre isso que eu quero
falar.
Antes que alguém ache que eu concordo com o que
aconteceu, NÃO, eu não concordo. Achei exagerado, desmedido
e descabido. Virar carros de trabalhadores, invadir lojas onde pessoas
trabalham, saquear, quebrar patrimônio histórico, nada disso se
enquadra nos meus ideais e acredito que nem na ideologia de toda aquela marcha
buscando justiça social e fim da corrupção. Mas, o que
aconteceu ali, reflete, em parte, o Estado de direito que não existe para grande
parte da população, principalmente aqui no Rio de Janeiro.
Sem fazer a linha “a marcha é da nova classe média”, a realidade é que grande parte da
população pobre, excluída e mais afastada do centro e zona
sul, tem dificuldade de participar desse processo. Apóia as reivindicações, mas não é politizada o
suficiente para também estar na rua, para levantar uma
bandeira e estar disposta a sofrer as conseqüências disso, como foi
visto no domingo, no Maracanã, quando grupos pacíficos foram
violentamente rechaçados pela policia. Para essas pessoas,
o Estado de direito não existe, simplesmente porque não. Porque elas não têm contato com a democracia
que a gente defende por saber ter direito. Muitas dessas pessoas não têm nem direitos, vide
aquelas que vivem dominadas pelo tráfico ou por milícias, e, como todos
sabemos, ambas financiadas pelo poder público.
Subindo um pouco a Avenida Brasil em direção a Santa Cruz, temos
a noção de como a política é diluída. Pequenos grupos
de resistência, normalmente ligados a algum partido de esquerda, ainda
tentam fazer algum tipo de mobilização. Mas, o que se vê, é a apatia geral. Não é à toa que o nosso
maravilhoso prefeito Eduardo Paes foi eleito e com imensa vantagem nas áreas mais carentes,
assim como o digníssimo governador que xingamos tanto.
Isso ocorre também pelas pessoas não acreditarem na política, nem nos políticos, então qualquer um que faça algo de fachada,
como clínicas da família e UPAs, passa a merecer votos com o
discurso “pelo menos ele fez alguma coisa”. Só que com o tempo,
essa mesma população percebe que foi enganada novamente
(como já havia sido com o Rio Cidade e Favela-Bairro do singelo César Maia). Tudo isso
só aumenta o sentimento de impotência destas pessoas
diante do poder público. Deputados são escolhidos, por
aqui, por serem amigos de amigos, com o discurso “se é para botar alguém lá pra roubar, que pelo
menos seja algum amigo”. E a cada escândalo em qualquer
esfera governamental não incita mais um sentimento de revolta,
e sim de conformidade. O que se ouve é “isso já é normal, é assim mesmo”.
Quando a juventude foi às ruas reivindicar
tanto o aumento abusivo das passagens, a qualidade dos transportes públicos, o dinheiro
gasto na Copa (e que ainda será gasto nas Olimpíadas), a população como um todo viu
que existe algo que pode ser feito. Trouxe um clima de que tem alguém lutando por eles,
por nós. Só que, a realidade para além da passarela 23,
assim como da baixada, é de extrema revolta, mas muito mais de
incredulidade sobre os rumos, já que estão acostumados a ver
as coisas estagnadas. Eu ouvi por aqui pessoas falando “daqui a pouco eles
cansam e volta tudo a mesma coisa”. Somando isso ao fato de essas pessoas
viverem à margem do Estado por vários motivos: falta
de saneamento básico, descaso com transporte, saúde ridiculamente precária, violência e opressão policial diária, cria-se um
sentimento de ‘ou as coisas mudam na porrada’ ou ‘nunca vão mudar’.
Quem olha os
protestos de fora, pode ter a ideia de que toda a população está sendo representada.
Mas tem muita gente que pode até estar sendo representada, mas que não se sente como tal. Pessoas
que, quando olham para aquele mar de gente tão exaltada pela mídia na segunda, simplesmente
não se vêem. Não vêem pessoas que tem
que acordar às 03hs e meia da manhã para entrar em um ônibus lotado, com
saco plástico no pé, para depois tomar chicotada dos
agentes da SuperVia. Não vêem naquela massa
pessoas que tem que dormir no chão com medo de levar um tiro por conta
de guerra entre quadrilhas do tráfico ou entre elas e a policia. Não vêem ali pessoas que
tem que pagar por uma segurança particular (as milícias da zona oeste)
e, caso se recusem, são espancadas ou mortas em praças públicas ou no meio da
rua para servir de exemplo. E isso não é só cena de Tropa de
Elite 2, não! Isso existe! Acontece aqui em Realengo, acontece em
Bangu, acontece em Campo Grande. ACONTECE!
Essas pessoas, quando vêem essas manifestações, apenas aplaudem e
acham bonito. Mas, em sua consciência acreditam que nada vai mudar.
Justamente pela descrença no poder público, na política, nos políticos, na burguesia
exploradora, nos partidos de esquerda vendidos, em tudo. A única realidade deles é que eles tem que
acordar no dia seguinte as 03hs e meia da manhã com saco plástico no pé e ir trabalhar para
tentar dar uma condição melhor para seus filhos, que por
muitas vezes estão na rua, absorvendo toda essa falta de
esperança e expectativa em algum futuro. E quando alguém invade o covil
desses vilões que são os políticos, quando picham
as fachadas, quando viram carros, quando dançam ao redor da
fogueira na frente da polícia, isso acaba se tornando uma vitória para essa parte
da população. Uma população que queria já há muito tempo dar um
tapa na cara de um policial, não por que desrespeita a profissão, mas por um
sentimento que ultrapassa o pessoal e cai sobre a instituição corrupta que esta
se tornou. Não seria de se espantar que espancassem Sergio Cabral e sua
corja, porque essa é a realidade deles. De opressão diária e incredulidade
em relação a mudanças. Essa é a vitória deles. Essa é a verdadeira realidade
que a imprensa esconde. A violência policial que ocorreu em São Paulo e no Maracanã no domingo é só um pequeno exemplo
do que ocorre dentro de favelas e nos subúrbios do Rio, longe
das câmeras.
É claro que a opinião pública influencia
muito essas pessoas, e na real, ninguém gosta de vandalismo e violência, mas essa parte
da manifestação, mesmo eu considerando errada, tem espelho na sociedade.
Esconder isso é perpetuar exatamente o que acontece. É preciso dar nome aos
bois e mostrar para os políticos que esse é o monstro escondido
em anos de opressão e falta de investimentos.
Não serei inocente de
pensar que as pessoas que invadiram lojas, que destruíram o Palácio Tiradentes são pobres ou
marginais. É claro que tinha um intuito de vários lados, incluindo
partidos radicais, o próprio governo que assistiu e assiste a
tudo esperando que o próprio movimento se desarticule por conta
desses eventos. Mas a verdade é que a população do Rio é extremamente
violenta. É fácil perceber isso quando você convive nos subúrbios. Não é só uma violência criminosa, no sentido
de querer infringir a lei; é uma violência inerente à situação social em que se
vive. Um sentimento de lei do mais forte que tomou a população do Rio nesses últimos 15 anos.
Não tenho embasamento
para dizer se isso é histórico, mas é fato que a falta do
Estado presente (Estado não só como força policial
repressora, mas como força social) fez criar essa sensação que você só é mais fraco que o
outro se ele estiver mais armado que você. Um ótimo exemplo disso são as torcidas
organizadas de futebol. Elas são verdadeiras gangues, na maioria das
vezes armadas, e que ao invés de serem tratadas como criminosas e
responsabilizadas as pessoas que cometem crimes nos estádios e nos arredores,
são tratados como torcedores enquadrados num estatuto cujo único objetivo era
fazer com que mais dinheiro fosse gasto para adequar estádios à essa realidade.
Imaginar que os atos de vandalismos que
aconteceram na Alerj é responsabilidade de um pequeno grupo
de bandidos (como estão sendo chamados na internet) é superficial e um
pouco leviano. Eles representam o que o Estado criou. Uma parcela da população que não conhece o Estado, só conhece a repressão e a falta de
representatividade. Pessoas que não tem zelo pelo patrimônio público porque eles não são públicos, e esse patrimônio não pertence a eles.
Simplesmente porque eles não pertencem. São excluídos, nasceram e
cresceram excluídos e aprenderam que quem não bate, apanha. E
cansaram de apanhar.
Novamente, e para finalizar, sou CONTRA atos de violência de qualquer um
dos lados. Achei absurdo o que eu presenciei na Rua 1º de Março. Já me coloquei à disposição para participar de
uma manifestação que pretende minimizar o ocorrido, tentando um diálogo com o IPHAN para
talvez pintar ou limpar as pichações no Paço Imperial e no Palácio Tiradentes, mas não podemos cair no
discurso da imprensa e imaginar que o que aconteceu foi um acaso. Foi na
verdade um descaso de anos que culminou na criação de um pensamento
violento e desmedido, ao qual estamos acostumados a ver longe dos cartões postais do Rio.
Essas pessoas representam sim uma parcela grande da população que não reconhece o Estado,
e que vê na força bruta e na violência a única forma de expressão possível. Cabe a nós, poucos por aqui,
mas muitos no Rio, tentar com palavras de ordem e apoio mútuo mostrar pra essas
pessoas que dá pra fazer diferente. E não, como eu li, dar um
tiro na cara de cada um, porque isso só favorece ao Estado, é discriminatório, triste e lamentável.