Inveja
Eu sinto inveja.
Sempre senti, percebi agora pouco
A uns dias atrás
Pensando sobre o passado
Sou negro, homem negro
Machucado pela vida
Atravessado pelo racismo
Fruto e uma relação interracial
Mas negro em meu fenótipo
Perdi meu pai cedo
Tive um padrastro branco
Cedo
Padrastro branco de outra época
Onde era normal ser racista
Onde piadas que depreciavam a minha cor
Era comum
Tive, por conta desse padrastro
E por conta de perder meu pai
Cedo
Uma educação em colégio particular
Onde a maioria das pessoas
Eram brancas
Não me sinto atraente
Não me sinto respeitável
Não me sinto
Percebi que tenho inveja do meu irmão
Que, por ter puxado o fenótipo do meu avô
Que tinha raizes dos povos originários
Possuía o cabelo liso
E raspava
Sentia inveja porque eu passei a gostar de rock
E por mais que o rock seja preto
É branco
De cabelos loiros e lisos
A maioria dos meus amigos eram brancos
E os pretos, aqueles poucos
Eram brilhantes, ou apenas pessoas
Que souberam lidar com esse mundo racista
E eu sinto inveja deles
Por querer ser mais como eles
Sinto inveja de quem é forte fisicamente
Pois sou fraco e magro
Sempre fui
Sinto inveja daqueles que conseguem se impor
Pois sempre fui subjugado
Desde criança
Sinto inveja de quem, pelo menos, finge não se afetar
Pelo que a sociedade oferece
Para nós, que não somos padrão.
Sinto inveja de quem pode ter saúde bucal
Pois meus dentes quebram e já arranquei vários
Sinto inveja de quem tem o carinho da mãe
Não que a minha não seja
É, do jeito dela
Machucada e atravessada também pelo racismo
Perdoei
Mas sinto inveja de quem pode ter
Um colo e não um julgamento
Uma atenção e não um esporro
Um abraço e não um cinto
Sinto inveja de quem consegue estar em seus empregos
Em suas rotinas
Reclamando, mas seguindo
Eu não consigo seguir
Eu desisto
Talvez por ser fraco e magro
Talvez por ser machucado e atravessado
Talvez por ser eu
Sinto inveja do que não sou eu
Não todo não-eu
Mas a maioria do não-eu
Inveja palavra feia
Não deveria sentir
Não deveria ser
Não
Hoje me perdoo por sentir
Afinal, quem controla sentir?
Quem controla o ser
Quando, como marionete,
Somos levados e trazidos
Na maré do neoliberalismo
Tenho 43 anos
Sou homem cis
Fui hétero a maior parte do tempo
Mesmo ouvindo que mais cinco minutos
Teria nascido “viado”
Mesmo ouvindo que não prestaria pra nada
Mesmo ouvindo que sou preguiçoso
Irresponsável, desatento, sem ambições
Mesmo ouvindo que fui um peso
Criado no patriarcado
Heteronormativo
Ensinado a tratar mulheres com misogenia
Para ser o negro-branco
Aquele que só estuda, e por isso
Tem a obrigação de ser o melhor
Que tirar 10 não é mais que a obrigação
Tenho inveja geracional
Por ter sido criado em uma época
Onde não se entendia o racismo estrutural
Onde não pude expressar subjetividade
Dentro da minha subjetividade
Onde tive que esconder quem sou
E escondo, ainda
Onde um relacionamento era uma vitória
E não uma realização
Onde agarrar as oportunidades era a norma
E eu era fora da norma
E as oportunidades vazavam pelos meus dedos
E o amor vazava pelos meus dedos
Tão liquido quando a água que descia pelo meu corpo
Quando no banho, eu pensava que essa cor poderia sair
Que meu nariz poderia afinar
Que minha orelha poderia ser menos pra frente
Que meu cabelo poderia cachear
Que meu afeto poderia ser entendido
Não como dependência emocional
Mas com uma necessidade
Que eu via sendo trocada
No meu grupo diverso de amigos
Quanto maior o medo
Maior o ódio
Maior a falta
Maior a ansiedade
Maior a depressão.
A maior parte disso se foi
Me perdoei
Por sentir inveja
Mas sinto ainda, e percebo
Que não há o que fazer
Em um lugar de não normatividade
Continuo sentindo inveja
Não quero, não sei o que fazer
Pra além de aceitar e entender
Que alguns motivos eu tenho, talvez
Que não faço idéia de quem sou
Pra além do que queria ser
E nunca fui
Nesse lugar
De simplesmente ser
A expectativa é grande
De todos, porque não tem como mostrar
O quanto atravessado eu sou
Pela inveja
Pelo medo
Por não saber o que fazer
Pra simplesmente ser
Eu.
Lean Valente
02/04/2025
18:35