quarta-feira, 2 de abril de 2025

 Inveja


Eu sinto inveja.

Sempre senti, percebi agora pouco

A uns dias atrás

Pensando sobre o passado

Sou negro, homem negro

Machucado pela vida

Atravessado pelo racismo

Fruto e uma relação interracial

Mas negro em meu fenótipo

Perdi meu pai cedo

Tive um padrastro branco

Cedo

Padrastro branco de outra época

Onde era normal ser racista

Onde piadas que depreciavam a minha cor

Era comum

Tive, por conta desse padrastro

E por conta de perder meu pai

Cedo

Uma educação em colégio particular

Onde a maioria das pessoas

Eram brancas

Não me sinto atraente

Não me sinto respeitável

Não me sinto 

Percebi que tenho inveja do meu irmão

Que, por ter puxado o fenótipo do meu avô

Que tinha raizes dos povos originários

Possuía o cabelo liso

E raspava

Sentia inveja porque eu passei a gostar de rock

E por mais que o rock seja preto

É branco

De cabelos loiros e lisos

A maioria dos meus amigos eram brancos

E os pretos, aqueles poucos

Eram brilhantes, ou apenas pessoas

Que souberam lidar com esse mundo racista

E eu sinto inveja deles

Por querer ser mais como eles

Sinto inveja de quem é forte fisicamente

Pois sou fraco e magro

Sempre fui

Sinto inveja daqueles que conseguem se impor

Pois sempre fui subjugado

Desde criança

Sinto inveja de quem, pelo menos, finge não se afetar

Pelo que a sociedade oferece

Para nós, que não somos padrão.

Sinto inveja de quem pode ter saúde bucal

Pois meus dentes quebram e já arranquei vários

Sinto inveja de quem tem o carinho da mãe

Não que a minha não seja

É, do jeito dela

Machucada e atravessada também pelo racismo

Perdoei

Mas sinto inveja de quem pode ter

Um colo e não um julgamento

Uma atenção e não um esporro

Um abraço e não um cinto

Sinto inveja de quem consegue estar em seus empregos

Em suas rotinas

Reclamando, mas seguindo

Eu não consigo seguir

Eu desisto

Talvez por ser fraco e magro

Talvez por ser machucado e atravessado

Talvez por ser eu

Sinto inveja do que não sou eu

Não todo não-eu

Mas a maioria do não-eu

Inveja palavra feia

Não deveria sentir

Não deveria ser

Não

Hoje me perdoo por sentir 

Afinal, quem controla sentir?

Quem controla o ser

Quando, como marionete, 

Somos levados e trazidos 

Na maré do neoliberalismo

Tenho 43 anos

Sou homem cis 

Fui hétero a maior parte do tempo

Mesmo ouvindo que mais cinco minutos

Teria nascido “viado”

Mesmo ouvindo que não prestaria pra nada

Mesmo ouvindo que sou preguiçoso

Irresponsável, desatento, sem ambições

Mesmo ouvindo que fui um peso

Criado no patriarcado

Heteronormativo

Ensinado a tratar mulheres com misogenia

Para ser o negro-branco

Aquele que só estuda, e por isso

Tem a obrigação de ser o melhor

Que tirar 10 não é mais que a obrigação

Tenho inveja geracional

Por ter sido criado em uma época

Onde não se entendia o racismo estrutural

Onde não pude expressar subjetividade

Dentro da minha subjetividade

Onde tive que esconder quem sou

E escondo, ainda

Onde um relacionamento era uma vitória

E não uma realização

Onde agarrar as oportunidades era a norma

E eu era fora da norma

E as oportunidades vazavam pelos meus dedos

E o amor vazava pelos meus dedos

Tão liquido quando a água que descia pelo meu corpo

Quando no banho, eu pensava que essa cor poderia sair

Que meu nariz poderia afinar

Que minha orelha poderia ser menos pra frente

Que meu cabelo poderia cachear

Que meu afeto poderia ser entendido

Não como dependência emocional

Mas com uma necessidade

Que eu via sendo trocada

No meu grupo diverso de amigos

Quanto maior o medo

Maior o ódio

Maior a falta

Maior a ansiedade

Maior a depressão.


A maior parte disso se foi

Me perdoei

Por sentir inveja

Mas sinto ainda, e percebo

Que não há o que fazer

Em um lugar de não normatividade

Continuo sentindo inveja

Não quero, não sei o que fazer

Pra além de aceitar e entender

Que alguns motivos eu tenho, talvez

Que não faço idéia de quem sou

Pra além do que queria ser

E nunca fui

Nesse lugar

De simplesmente ser

A expectativa é grande

De todos, porque não tem como mostrar

O quanto atravessado eu sou

Pela inveja

Pelo medo

Por não saber o que fazer

Pra simplesmente ser

Eu.


Lean Valente

02/04/2025

18:35

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